4 September  |  31 October 2010



 
















AMAR-TE A VIDA INTEIRA

Partindo de um eixo temático colável à grande utopia da história dos sentimentos humanos, Ana Pimentel instala à nossa frente um lugar florido, carregado de rosas em torno de círculos, porventura memória de vários aniversários cujo trajecto parece assinalado além da geometria fecundada — novas frases, as mesma frases, o teu rosto assemelha-se ao meu. Viagem como que intemporalizada sob a antiga imagem da chuva de estrelas, corolas festivas, recortadas na periferia em redondos contínuos, flores numa estilização ornamental e caligráfica, identificadas, fecundantes, enquanto as formas circulares, talvez girando no eixo da ordem natural, se propagam pelo espaço, entre contrapontos quadrados ou rectangulares, universo de cores básicas, amarelos, azuis, vermelhos, mas também brancos e pretos, verdes e rosas, a par de grelhas feitas de padrões de revestimento, regulares ou povoados de hastes bizarras e em todo o caso reconhecíveis.
Vivemos assim, com esta pintora, instantes pacificantes, donde em onde a ganhar fecundações de alegria, de um reencontro com a idade da inocência e das primeiras formas fechadas, após meses e meses de garatujas inconjuntas e às quais cada criança atribui nomes, falas, emergência dos rostos que um dia serão feições de pai e mãe, ou figuras de irmãos, ou lembrança de animais domésticos. O caminho de Ana Pimentel, cuja frescura e clima colorista primam pelo recorte, pela colagem ou por aquisições de técnicas mistas, acedeu a relações de peso e harmonia num leque afinal exíguo de elementos gráfico-pictóricos, ordenados segundo especiais regras implícitas mas repercutindo também  musicalidades menos melódicas do que parecem à primeira  vista, porque, como se presume, o ser emergente da sala onde tudo isto acontece mostra ter aprendido o valor rítmico dos batimentos, dos desencontros e encontros  desse festim: a desordem na ordem, a diferença na semelhança.  De resto, entre muitos grandes artistas do século XX que se dedicaram à aproximação reiventiva da escrita em plena infância, o princípio operativo era reganhar a inocência para a natural impureza da arte. Coisa que nunca aconteceu, se pensarmos bem, porque nem a criança confunde obediência com inocência, nem esta aparente realidade aprisiona a genética dos sonhos, das aventuras coloridas, dos papéis recortados que se relacionam com flores de papel e ordenam o universo familiar (ou todos) deste modo cheio, feérico, quase obsessivo, do qual se retiram  o significado de datas importantes, nascimentos, alegrias colectivas.
Por isso não nos podemos esquecer, fechando uma espécie de arco de círculo, das bonecas no centro de espaços aconchegados, carregados de flores, rosas por inteiro entre a tonalidade própria da sua cor espalhada, em osmose com brancos e uma luz amarela, de estrela nascente, impulso de certa estética da brandura e da festa, algo que subirá às paredes, pintando-as de um amor para sempre, acabando com as tintas lisas de paredes que imitam desertos a prumo.

ROCHA DE SOUSA   crítico de arte / art critic     26.08.2010